Porque são as mulheres as primeiras a falharem-se, a criticarem-se e a colocar pedras no caminho já tão desafiante de percorrer? Porque insistimos em vestir um papel que nos atribuíram em vez de nos despirmos de todos as etiquetas, as tradições, as crenças e limitações que nos foram colocando na bagagem que carregamos todos os dias no corpo e na alma?
Estamos tão focadas em desempenhar a nossa função atribuída pelos outros que nos esquecemos da nossa essência. Forçamos as meninas pequenas a serem meninas em vez de serem crianças. Incutimos-lhes crenças limitadoras. Moldamos o seu espirito. Cravamos um prefácio na folha branca que é a sua existência e ditamos o início de uma histórias idêntica a tantas outras e que no fundo sabemos que não nos fará feliz.
Lembro-me de Fadumo, uma menina doce, inocente e feliz na Somália. Até ao dia em que aos sete anos de idade, a sua mãe a levou para o deserto. À sua espera estava uma mulher idosa que estendeu um pano branco no chão. A senhora tinha na sua mão uma lâmina envolvida numa papel vegetal. Quando ela não o conseguia abrir, Fadumo, na sua inocência e obediência, pegou, abriu e devolveu-lhe a lâmina para a mão e ficou reticente à espera do que iria acontecer.
Seguiram-se uns segundos de silêncio e imobilidade em que Fadumo, levada pelo seu instinto de sobrevivência, fez um movimento rápido para fugir mas elas agarraram-na, deitaram-na no chão e tudo aconteceu muito rápido. Ela foi desde logo abrangida por um medo enorme que lhe consumia todas as forças, ao ponto de querer vomitar.
Fadumo queria gritar mas não conseguiu soltar um som sequer. Demasiada era a sua dor. O sangue escorria-lhe pelo anus. Estava frio como gelo. Ela sentiu-se morta naquele momento. Desmaiou e quando recuperou os sentidos, estavam já a cozê-la. Ela sentia o instrumento bicudo a perfurar a sua pele mas já não conseguia identificar em que parte do corpo era. A dor tinha se alastrado por todo o seu ser. Era como se a cada movimento perfurassem o seus órgãos, a sua alma e o seu espírito.
Em todo mundo 200 milhões de mulheres sofrem de mutilação genital. A mutilação genital feminina (MGF) consiste na remoção de parte ou de todos os órgãos sexuais externos da mulher, através do uso de uma lâmina muitas vezes sem qualquer tipo de anestesia. Esta tradição, sem qualquer ligação religiosa, concentra-se essencialmente em África e na Ásia mas abrange também muitas mulheres na Europa. A idade em que é realizada varia entre alguns dias após o nascimento e a puberdade. A maior parte das jovens é mutilada antes dos cinco anos de idade. É uma prática que visa a desigualdade de género, na tentativa de controlar a sexualidade da mulher e garantir a pureza, modéstia e estética da mesma.
É incutida a ideia às mulheres de que sem este procedimento, os seus lábios genitais irão crescer até ao fundo dos seus pés e um objeto bicudo iria sair da sua vagina e poderia ferir o homem e matar os seus filhos ao nascer. Por isso, seria vital remover o clítoris e o prepúcio clitoriano. E no pior dos casos, remover os grandes e pequenos lábios, posteriormente encerrando a vulva. Neste último procedimento, denominado de “infibulação”, é deixado apenas um pequeno orifício para a passagem da urina e do corrimento menstrual. A vagina é novamente aberta na noite de núpcias pelo marido, recorrendo a uma simples faca. As consequências são devastadoras para as mulheres. Infeções, dor crónica, dificuldade em urinar e menstruar, infertilidade, cistos, complicações no parto e mesmo hemorragias fatais.
Porque deixam as mães passar as suas filhas por esta tortura, sentenciando-as a uma vida de dor e sofrimento? A resposta é só uma: Por pressão social. As raparigas que não o fizerem podem ser totalmente marginalizadas e afastadas culturalmente. Fadumo nunca mais seria a mesma. Apesar das imensas dores, ela sobreviveu. Ao contrário de tantas outras meninas que acabam por morrer. Ela aceitou o seu destino, pois isto ter-lhe-ia sido incutido por todas as mulheres da sua vida e por uma cultura que era maior que elas. Ela nunca questionou o porquê. Ela até se sentia forte e pura, uma vez que as raparigas que não o faziam eram consideradas impuras. Apesar da tentativa de ignorar as dores, ela era relembrada a cada passo que dava, cada vez que se sentava, que respirava. A cada segundo da sua existência. As dores inexplicáveis de urinar ou menstruar relembravam-na ainda mais o quão doloroso era ser mulher.
Fadumo contraía as as mãos e os pés com toda a força para combater a dor. Ao ponto dos seus membros ficarem deformados para sempre. Os dedos das suas mãos estão encolhidos e curvados. Os seus pés estão encolhidos e apontam para dentro, como se quisessem fechar qualquer abertura ou exposição daquela que seria a porta para o seu sofrimento e vergonha. Ainda hoje aos 56 anos, as marcas são visíveis. Fadumo vive numa constante ansiedade. As dores continuam a acompanhá-la e as suas mãos e os pés continuam deformados. Ela própria não entende como tradições destas que visam unicamente diminuir e reprimir o valor e a sexualidade da mulher continuam a persistir. Se a tradição ditasse cortar metade do pénis aos homens, esta já teria sido abolida há imenso tempo certamente.
A mutilação genital feminina vem sendo ilegalizada ou restringida em grande parte dos países onde ainda é praticada mas as autoridades continuam a encontrar uma enorme resistência por parte da população. Tantas vezes nós mulheres fazemos ou dizemos algo porque social e culturalmente é nos incutido e acabamos por viver esta mentira. Condenamos as gerações seguintes às mesmas crenças limitadoras, às mesmas dores e aos mesmos traumas. Só porque é assim que “deve” ser.
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